opusculae/antigae/chronicae/2014OUT10-SeOriente.md
2022-01-22 12:15:24 -03:00

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# Se orientando[^1][^2][^3]
Era o tempo da copa. Os gringos chegam, e é um tremendo vai-e-vem de táxis e
carros alugados. A cidade se estende mar de morros adentro, são doze milhões
de habitantes em seus seis milhões de veículos. Entretanto, seis milhões sem
carro não é baixo número: imagine todos esses seis milhões pendurados nos
"seca-subacos" dos ônibus da cidade. Três milhões deles, sabe-se usam os
mirrados quilômetros de metrô que a cidade tem, e o resultado disso não se
deixa negar pelas fotos publicadas nos jornais, vez por outra,
na eventualidade de uma falha.
Mas para onde vão? De onde vêm? Do que vivem? Ora, alguns fingem que
estudam, outros fingem que trabalham, outros, mais honestos, se
deixam confessar que vivem pelo smartphone. Porém, passear com o
smartphone não é tarefa simples, em uma cidade tão grande. Quer ir
à Rua Sete de Abril para obter o assalto perfeito? Ali passa o
Estação da Luz. Quer ir à Santa Ifigênia? Ali passa o Praça Ramos.
**Mas, espere!** O que é esse tal de "Praça Ramos", um pobre incauto
poderia perguntar, com seu tablet debaixo do braço, pronto para
uma leitura de um livro do Paulo Coelho. Você, paulistano da gema,
responde maquinalmente: 8707[^4].
E o que é esse diabo de 8707? O paulistano apressado aponta para
um ônibus laranja e segue seu caminho antes mesmo de dizer
"Boa tarde". Parece fácil, mas as linhas de ônibus não vão de
um ponto a outro, apenas. Passam por uns, perpassam outros. É um
zigue-zaque de um zique-zira danado. E quem explica? Freud sentiria
dificuldades, ao desembarcar no Terminal Santo Amaro.
Por que tantos números, placas, códigos?
O sistema de ônibus de São Paulo é uma equação de enésimo grau que
nem Pierluigi Piazzi resolve. Aliás, ao que sabe, nem a equipe da
gestora de transportes poderia resolver, mesmo em equipe. O metrô
é simples, cada estação é uma fanfarra de luz e gente bem sinalizada.
Mas e um ponto? Um ponto é um toco de madeira espetado na calçada.
Às vezes é uma suntuosa estrutura de metal. Mas e a lista dos serviços?
Ninguém sabe, ninguém viu. O Zé Tião da Padaria vai saber te
informar melhor, meu.
Para começo de conversa, temos um sistema multicolorido no qual
cada área tem uma cor, mas no qual, também, pode-se ver um ônibus
da puta que o pariu extrema atravessando **numa boa** outra área.
Esqueça a cor, certo? Vamos aos números. Aos milhões de passageiros?
Não, meu caro. Há um código de quatro caracteres, exibido pelos ônibus.
É o 8707 do qual você não entendeu nada. Desses quatro caracteres,
temos o primeiro, que não quer dizer absolutamente nada, o segundo,
que não diz lhufas, o terceiro, que não faz sentido e, por final,
o quarto, que às vezes é uma letra, às vezes um número. E agora, José?
Para Platão, a idéia de código é outra. Peguemos 828P, por exemplo.
O oito é a área, o dois é alguma distância aleatória que o burocrata
pegou e o oito é, em tese, a área final. "P" é um ponto importante
no qual ele passa. Na prática, isso funciona: Lapa (área 8) -> Barra
Funda (área 8)[^5], via algum lugar que comece com P (ou tenha P como
letra marcante). Às vezes também pode ser a inicial da paixão do
burocrata que criou a linha ou do filho mais novo dele. Se temos
quatro dígitos numéricos, a linha é daquelas que dão volta dentro
do bairro ou vão parar em algum lugar do centrão, nesse caso, o
primeiro dígito é a área de partida, o segundo é geralmente "zero"
e os outros dois definem onde o busão para, se é ao lado do mendigo
conhecido ou se é do lado do prédio precisando de reparos.
Brincadeiras à parte, há, claramente, um critério para tudo isso.
Mas a prática é que esse sistema foi criado na gestão de Olavo Setúbal
lá pelos idos de 79 e sobreviveu à diversas mudanças no sistema.
How come? Ora, se você já tinha trinta anos em 79, deve ter odiado
saber que seu ônibus "666" virou "866B" ou algo do gênero. Eram nove
áreas, tudo era bonito e fazia sentido. E se não fizesse, a CMTC
fingia que sim. Entretanto, das nove áreas, fizeram quatro. E das
quatro fizeram oito, algum tempo depois. E em meio a esse samba
do criolo doido, mantiveram o sistema, pois o João da Silva que
pegava o 666 detestaria descobrir que o seu ônibus virou 4-066X.
E as cores? Ah, as cores, que pedi para esquecerem. Doutor, veja
bem: não é que devem ser esquecidas, mas somos latinos. Como bons
latinos, somos especialistas em produzir nuanças gritantes, por
mais paradoxal que isso seja. Mas, ora, doutô, somos o paradoxo!
As cores remontam, também, ao Olavo Setúbal. A mixórdia de
concorrentes, coloridos e outros tipos precisou parecer mais
oficial, daí tiveram a idéia de estipular cores para cada uma
das nove áreas, sendo que os ônibus seriam pintados no esquema
saia e blusa, tendo a saia na cor da região. Ainda havia um sinal
forte de que o ônibus era de tal ou tal companhia. Isso, porém,
se extinguiu por completo quando a Erundina resolveu concorrer
com o Serra e vender seus próprios remédios: aquela famosa
pintura da faixa vermelha.
Agora todos sabiam que o "Transporte é um dever do estado e um
direito do cidadão". Difícil mesmo era saber de cara quem era o
filho da puta que operava aqueles ônibus malacafentos cheios de
barata ou daquele desgraçado que não pára nos pontos nem com o
ônibus vazio. Impossível era saber, então, de rabo de olho, se
aquele ônibus vai para o INOCOOP ou se te levava para as
profundezas do Capão Redondo.
Foi assim por longo tempo. Havia variações, como a faixa azul
para os ônibus de cooperativa, bem como a faixa verde, para os
carrões bem motorizados, resistentes e geralmente usados nos
corredores criados por Setúbal (somado a uns já projetados, porém
mal implantados). Entendeu? Esqueça tudo. Agora temos novamente
quase nove áreas, porém menos uma. São oito, e listar aqui dará
sono. Jogue no Google Images: "Áreas São Paulo". A oitava área é
laranja, daí o exemplo do 828P e 8707. Agora sabemos para onde o
ônibus vai, embora continuems sem saber de cara quem opera o carro,
já que agora é ainda mais fácil de se esconder o logotipo da empresa.
E aí chegamos ao problema do "doutô", ali acima: você pode estar em
um ponto de ônibus na Raposo Tavares, em plena área oito, e ainda
sim vir passar um ônibus verde escuro, indo ao Ipiranga (mas na
verdade vai além e finca sua estaca no Sacomã).
O fato é que não há verdade quando se fala no sistema de ônibus
paulistano. Quem conhece, conhece por meio do empirismo. A falta
de carro e metrô é um bom meio de treinar os usuários. Os corredores
existem, sim, mas não levam objetivamente de um ponto X ao Y.
Experimente pegar um ônibus qualquer no meio da Rebouças. Você
pode chegar ao Paraíso, à Liberdade ou ao inferno (também conhecido
como Praça da República). O resultado da aleatoriedade é inversamente
proporcional ao destino em que você precisa chegar.
E, enfim, jogando os dados no tabuleiro e anotando os resultados é
a melhor forma de se andar por aqui. Há um amigo meu que tem algo
chamado “ansiedade social” ou, em outras palavras, timidez para
falar com outros humanos que não os de sua própria manada, sei
que ele jamais perguntaria ao seu Zé da padaria. Carajaense da
gema, dois, três anos de São Paulo e uma dose de sorte é tudo o
que tem nas mãos, depois do confuso site de nossa caríssima gestora
de transportes. E, como se não bastasse a multicolorisse, ainda há
ônibus prateados, há ônibus intermunicipais e diversos outros tipos
de transporte de massa sobre pneus que chamam por aí de micro-ônibus
(costumo chamá-los de escória).
Segue assim, que de bar em bar ou de barra em barra, Deus que protege
aos bêbados e desamparados cuida de levar seus escolhidos para casa.
Caso você ouça AC/DC é provável que seu destino seja forçosamente
Itaperica da Serra, então sempre é prudente mencionar que estamos
falando de um Deus cristão, entendem? Veja ali: aquele ônibus é
abençado por Deus -- "Deus é fiel". Tão laico quanto o sistema da
cidade é impossível, já que os ônibus são de Deus, os usuários de
Judas e o sistema de Satanás. Aonde quer que você vá, bíblia e
candelabro debaixo do braço e lá te vejo! Boa viagem!
[^1]: Também publicado [aqui](https://blog.tadeu.org/2014/10/oriente-se.html)
[^2]: Revisado para arquivamento no dia 22 de janeiro de 2022, portanto
podendo diferir um pouco da versão mencionada na nota anterior
[^3]: Por ser baseado numa versão anterior, não contém todas as modificações
feitas ao texto publicado no weblog.
[^4]: Incorreto. A linha em questão é a 8705/10, como apontado, à época, por
Pedro L. N. Christensen. A linha 8707/10 apenas tange a Praça Ramos,
fincando sua estaca no Terminal Princesa Isabel.
[^5]: Tecnicamente, apesar destas áreas (Lapa e Barra Funda) pertencerem à
Zona Oeste, os burocratas amam dizer que esta é, na verdade, a tal
área nove, uma estrovenga que abrange toda a região entre rios até o Brás,
Sacomã e Campo Belo. O número era (a linha não mais existe), portanto, um
legado. Um melhor exemplo seria 809P (Campo Limpo, área 8 até Pinheiros,
área 9), sendo P uma forma de distinguir esta linha das outras 809x. De
qualquer modo, esta continua uma gambiarra e os critérios ainda não são
nem um pouco claros.