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# “Hoje eu acordei quase pronta para virar uma formiga-ciborgue”
(originalmente postado no facebook)
_Por Ananda Portaro, 13 de agosto de 2020_:
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> “Hoje eu acordei quase pronta para virar uma formiga-ciborgue.
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> Devo contar-lhes que é um esforço tremendo. As entranhas começam a querer se mostrar, o corpo começa a doer, a percepção pede por se aguçar. É preciso olhar para dentro; olhar para o fundo, e o fundo é a pele.
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> Permito-me a tentativa. Hoje, três de agosto de dois mil e trinta e oito eu quero fazer uma aliança com as formigas e com os ciborgues. Mais, com as formigas-ciborgue. Temo que os soldados da maquinaria burocrática estatal encontrem meu esconderijo; não! A Terra está parada mas eu não. Nós não. Ah, como doem os meus ombros. Vou soprar o meu rapé e cartografar mais dos meus caminhos não trilhados. Eu estou quase sabendo operar esta transformação. Espero que os meus colegas também. Precisamos de todos e isto não pode falhar.
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> Para me transformar em formiga-ciborgue eu sinto que preciso de quatro grãos de areia de qualquer praia de Ubatuba, três gravetos de ninhos de bem-te-vis, dois Tridents de morango e um exame computadorizado dos meus rins. Como perseguida pelo governo e com tantas pandemias acontecendo lá fora (após a destruição total da floresta amazônica em meados de 2024), eu não sei como conseguiria tudo isso se não fossem as minhas aliadas formigas-não-ciborgues indo buscar para mim e enfrentando chuva, sol, pulgas, poeiras dos mais variados tamanhos. As últimas já devem estar voltando de sua jornada para Ubatuba. Infelizmente as formigas não conseguem me arrumar uma máquina de tomografia para o exame dos rins; nisso eu terei que dar outro jeito. Descubro o jeito enquanto escrevo; enquanto escrevo minhas entranhas doem e enquanto doem eu sou obrigada a me descobrir fora de minhas neuroses. Sou obrigada a me descobrir enquanto formiga-ciborgue. Céus, como é difícil.
Quatro de agosto. As minhas aliadas formigas-não-ciborgue não chegam. Será que elas estão bem? Será que estão mortas? Será foram assassinadas, amordaçadas, será que tiveram suas antenas arrancadas e alienaram-se? Será que se deram conta que pensar, sentir, viver é muito difícil e desistiram de voltar? Como que eu vou operar minha transformação sem elas, ó Deusas? Eu não consigo sozinha. Eu não faço nada sem fazer parte de um formigueiro minha energia vital se esvai minha alegria não existe minha potência de vida não encontra outras potências e vai sumindo. Eu preciso acreditar que eu consigo fazer algo no mundo que eu consigo pertencer a um formigueiro mas que formigueiro, ó Deusas? Cadê, onde tem, formigas que queiram conjugar-se com ciborgues? Que queiram viver em estado de magia? Que queiram criar comigo, pensar, sentir, transar, chorar, morrer?
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> Cinco. Ó Deusas, eu temo tanto que lá fora só haja gente adaptada. Temo tanto por essa solidão que sinto e que nenhuma formiga tenha o sonho de criar um castelo-formigueiro com a nossa própria criação de fungos para que possamos ver cores no mundo que se tornou cinza e instituído. Será que alguma formiga vem? O medo impera, eu sei que impera. Faz quanto tempo que você não se sente vitalizado? Faz quanto tempo que você não se sente inserido em um meio social interessante, criativo, interventivo, horizontal; algo que você sinta que realmente pode mudar coisas nessa máquina de poder em que vivemos? Você já sentiu isso alguma vez? Faz quanto tempo que você não se sente escutado? E que você não escuta? Você já saiu lá fora hoje (cinco de agosto de dois mil e trinta e oito) e viu que as pessoas facilmente voltam à “vida normal” e você já parou pra pensar o porquê disso? Você pensa? Você sente? Você se movimenta? Você vive?
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> Porque eu não. Eu só vou viver quando eu for formiga-ciborgue. O que só vai ser possível com outras formigas-ciborgues. E eu espero seja uma vida nada normal.”
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Meu comentário (mesma data):
Oh, resplandecente novo mundo! Mais fácil ter aos pés uma inteira civilização do que uma simples máquina de tomografia. Lá fora o sol arde, arde e arde. Sem sombra, nem rios ou lagos. É tudo árido como a superfície do concreto. Quiçá a vitória virá, um dia, sei que virá. A que custo não sei. Verto-me em ciborgue, máquina, reinvento a medicina, substituo os falhos tecidos biológicos com a perfeição da técnica. Tudo em vão, dias vêm, dias vão, cá estou, caneta em riste, prosa resiliente, e como nunca tão longe do fim. Tornei-me máquina para preservar a alma, perdi o traquejo para as articulações mecânicas. Oh, limitado ser humano, tão carnal, tão estético.
Por que nos é tão cara esta maldita metafísica se tanto de matéria e tato somos forjados? Invejo mesmo a nata formiga-ciborgue, precisa por inatismo, sagaz por programação, adaptável pela técnica. Um marco da evolução planetária. Convirjo a isto para que amanhã, depois e ainda mais outro dia viva. Não mais como homosapiens, tão tridimensional, sem fundos, mas agora como algo mais. Mas e minha essência? retine a velha indagação. Como hei de fazer? Paciência. Amanhã é outra a estética. Outra perspectiva.
Nós, estes platônicos dos últimos dias, escarafunchando pela verdade atrás das pedras, sombras, penumbras, partimos para o fim da era. De universal, sobra, talvez, Bach, Mozart e mais algumas coisas. Os outros excertos morrem, os universais se dissipam pelas ondas eletromagnéticas para, um dia, um novo Moisés cibernético abrir este mar e ver se dele ainda algo há de persistir. Ao tempo, só mesmo o tempo pode testar, além de nossos biológicos e degradados corpos, panguantes sob estes exoesqueletos. Um ser débil, frágil, dependente da técnica. Sobra o legado. Mas que legado? Não respondo. Talvez as formigas o façam, ainda que isto não verei.